Desaprender preconceitos dá trabalho — e ele é todo seu
“Eu não debato mais com gente branca sobre raça. Não todas as pessoas brancas, só a vasta maioria que se recusa a aceitar a legitimidade do racismo estrutural e seus sintomas. Eu não posso mais ser lançada ao abismo de desconexão emocional que as pessoas brancas exibem quando uma pessoa de cor articula sua experiência.” Foi assim que a jornalista inglesa Reni Eddo-Lodge iniciou a publicação em seu blog pessoal que, após viralizar na internet, tornou-se o livro best-seller Por que Eu Não Falo Mais com Gente Branca Sobre Raça (Editora Letramento, 221 páginas, R$49,90) e que, ironicamente, levou-a a falar sobre raça para milhares no Reino Unido.
O sucesso de seu desabafo mostra a força desse sentimento compartilhado. “Muita gente acha que porque eu falo sobre racismo nas redes sociais, desabafando sobre minhas experiências, estou dando abertura para ser consultora pessoal sobre racismo”, conta Karoline Gomes, jornalista — negra — de São Paulo. “É um comportamento que manifesta uma posição privilegiada, de achar que as pessoas negras estão sempre disponíveis para ajudar as brancas, e ele vem acompanhado de um sentimento de que essa atitude jamais poderia ser negativa — afinal, estão apenas tentando aprender.”
A questão é que, muitas vezes, esse aprendizado se dá às custas do tempo e da disponibilidade emocional de indivíduos que pertencem a grupos minorizados. “A jornada para compreensão do racismo estrutural ainda requer que os negros priorizem os sentimentos dos brancos”, escreve Eddo-Lodge. “Seus olhos ficam entediados ou indignados. Suas bocas começam a tremer conforme ficam na defensiva e se abrem quando tentam me interromper em vez de me ouvir de verdade, porque precisam que eu saiba que estou errada. Sua intenção não é ouvir e aprender, mas exercer seu poder, provar que estou errada, me sugar emocionalmente e rebalancear o status quo.”
O estresse e o cansaço causados por essas experiências não são apenas “mimimi”. Um estudo realizado pela socióloga Kathryn Freeman Anderson, da Universidade de Houston, nos Estados Unidos, mostra que episódios como os descritos acima têm efeitos reais na saúde física e mental de quem passa por eles. Ao analisar os dados de 30 mil norte-americanos, ela descobriu que, “por conta da prevalência da discriminação racial, ser uma minoria racial leva a um estresse maior”. Isso quer dizer que 18,2% dos participantes negros demonstraram estresse emocional e 9,8%, estresse físico. Em comparação, os mesmos índices foram de 3,5% e 1,6% para os participantes brancos.
Em outras palavras, ser negro em uma sociedade racista significa lidar diariamente com uma carga emocional negativa. “Quando tomei consciência de como o racismo vinha me afetando havia anos, passei a ver que ele se manifesta de diferentes formas na minha vida”, explica Gomes. “Sempre reflito sobre a presença dele nas minhas relações e nas oportunidades que tive ou perdi, bem como nos comportamentos que as pessoas esperam de mim por eu ser negra, por exemplo.”
A forma do preconceito
Segundo Anderson, “a discriminação é um tipo de estresse que afeta as minorias de maneira desproporcional”. Isso fica evidente na comunidade LGBTI: dados da ONG Mental Health America mostram que indivíduos que se identificam como gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros etc. têm três vezes mais chances de desenvolver problemas de saúde mental em comparação aos heterossexuais. Além disso, jovens da comunidade LGBTI têm quatro vezes mais chances de se autoflagelar, ter ideação suicida e efetivamente tentar cometer suicídio.
“Conversando com pessoas cis [que não são trans] sinto muita ansiedade, pois, como pessoa trans não binária, que não se limita ao que é conhecido como masculino ou feminino, preciso sempre decidir se vou ou não ‘sair do armário’ toda vez que me apresento e, depois, ter que responder a milhões de perguntas”, explica Leigh Ain Newton, estudante de cinema da cidade de Leeds, na Inglaterra.
Esperar que os indivíduos dessas comunidades sejam responsáveis pela educação de outras pessoas a respeito das opressões que sofrem por ser quem são não é apoiá-los, mas oprimi-los ainda mais.
As pessoas que sofrem discriminação já são submetidas a um desgaste psicológico tão intenso que a especialista Monnica Williams, diretora do Laboratório de Disparidades de Cultura e Saúde Mental da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, propõe que essas experiências sejam classificadas como doenças. “O estresse e o trauma são produtos desses tipos de experiências que os grupos minorizados precisam encarar com frequência. Eu argumentaria que isso é patológico, o que significa que é um transtorno que podemos identificar e tratar. Para mim, tais sintomas são de um transtorno diagnosticável que requer intervenção médica. Ele é amplamente desconhecido pela maioria das pessoas, de acordo com minha experiência clínica”, explica a psicóloga em entrevista à New York Times Magazine.
Junto com o avanço de pautas sociais, tem crescido cada vez mais o interesse de grupos minorizados por métodos de autocuidado e debates sobre saúde mental. No epílogo de seu livro A Burst of Light, sem tradução no Brasil, a escritora e ativista por direitos civis Audre Lorde resume: “Cuidar de mim não é indulgência, é autopreservação, e é um ato político de combate”.
No caso de Reni Eddo-Lodge, não falar sobre raça com pessoas brancas é uma forma de se proteger. “Não falarei com pessoas brancas sobre raça a não ser que absolutamente tenha que fazê-lo”, afirma. “Se houver algo como uma conferência ou entrevista em um ambiente no qual eu sinta que as pessoas estão me ouvindo e também me sinta menos sozinha, então participarei. Mas não vou mais lidar com pessoas que não querem e, francamente, não merecem me ouvir.”
O dever do aliado
Nesse cenário, o exercício da pessoa privilegiada (seja ela branca perante um negro, homem perante mulher, cis perante trans, entre outras dinâmicas) começa na compreensão de que a sua educação sobre a experiência do outro é um trabalho seu.
Larissa Magrisso, vice-presidente de criação e conteúdo da agência W3haus, vive os dois lados da questão: enquanto mulher feminista, é procurada por amigos homens que desejam aprender mais sobre o movimento. Ela, no entanto, lida com isso de forma positiva. “É bom, pois muitos vêm interessados e com humildade, com a intenção de mudar comportamentos. Mas sei que esse hábito não pode se tornar uma muleta, como uma terceirização da responsabilidade”, conta ela.
Enquanto mulher branca engajada na luta antirracista, Magrisso vai atrás de informações sobre raça por seus próprios meios: “O primeiro passo é me ver como aprendiz e ouvinte. Leio sobre o assunto e ouço com muito respeito os pontos de vista de quem sofre com discriminação, procurando entender e nunca minimizar as experiências dos outros. Esses temas realmente são prioridade para mim, tanto para contribuir no dia a dia quanto para entender as mudanças sociais pelas quais o mundo está passando”. Para se informar, ela acompanha discussões em redes sociais, segue youtubers que debatem racismo, feminismo, LGBTIfobia e gordofobia, bem como plataformas de conteúdo, revistas e livros que abordam esses assuntos.
Karoline Gomes vê esse passo como essencial e complementa: “Antes de perguntar, é importante tentar descobrir sozinho. Temos a internet, livros, documentários. Há várias formas gratuitas de se informar — nem precisam ser fonte acadêmica. Tem bastante gente produzindo conteúdo bom, importante e acessível. Basta procurar”.
Isso não significa que pessoas em diferentes espectros da hierarquia social estabelecida estejam impedidas de conversar sobre as discriminações sofridas por um dos lados. Esse diálogo apenas precisa ser fundamentado em respeito pela experiência do indivíduo que sofre discriminação.
Leigh Ain Newton recomenda que, nesses momentos, as pessoas tenham humildade e evitem tornar suas próprias jornadas de aprendizado o centro das atenções. “O mais importante é estar aberto e pronto para aceitar, sem fazer um bilhão de perguntas e transformar tudo em algo maior do que realmente é”, aponta.
Por último, Gomes ressalta a necessidade de haver consentimento para a própria conversa. “É preciso ter sensibilidade e empatia na abordagem, pois são temas delicados e, por vezes, dolorosos. Tente saber antes se a pessoa está disponível para a conversa em si.” A dica dela é perguntar “Tudo bem se eu te perguntar sobre isso?” antes do início da conversa e prosseguir a partir da resposta.
Magrisso faz coro: “Temos que superar o choque de se ver como privilegiado e preconceituoso e entender que isso não é nossa ‘culpa’ individualmente, mas que é estrutural da sociedade, e possível de mudarmos. Para isso, é necessário o comprometimento em ser um aprendiz de desconstrução, que é um trabalho que pode durar a vida inteira”.
COMO AGE O BOM ALIADO
Torne-se uma pessoa desconstruída sem ferir o próximo
Pé no chão
Entenda seu lugar como ouvinte e aceite que, mais do que se declarar aliado, precisa agir e mudar comportamentos para colaborar de verdade com a causa.
Bem informado
Antes de chamar o amigo negro no WhatsApp para perguntar se foi racista ou não, busque as próprias fontes de informação para sanar suas dúvidas.
Empático
Ao conversar sobre temas sensíveis com vítimas de discriminação, busque consentimento para puxar o assunto e não questione as experiências do outro.
Esforçado
Mantenha a cabeça aberta para mudanças e, com o aprendizado, busque detectar seus próprios comportamentos e atitudes preconceituosas e se comprometa a alterá-los.
Sentinela
Alerte amigos privilegiados sobre atitudes discriminatórias (piadas, expressões etc.), mesmo quando não estiver na presença de uma vítima de preconceito.
Livros
A produção literária de grupos minorizados é uma fonte excelente de informação para quem deseja aprender sobre processos discriminatórios tanto vigentes na sociedade atual quanto ocorridos no passado.
Recomendação: O Que É Lugar de Fala?, Djamila Ribeiro
Youtubers
O YouTube se tornou uma ótima fonte de conhecimento. Atualmente, a plataforma é um dos meios mais rápidos e acessíveis para ouvir experiências diretamente de quem as vive no dia a dia.
Recomendação: Canal do youtuber e publicitário Spartakus Santiago
Sites e redes sociais
Há diversas possibilidades: siga pessoas de comunidades minorizadas, participe de grupos que debatam causas sociais, busque blogs, newsletters e fontes de notícias com foco nos grupos que deseja apoiar.
Recomendação: Conheça o trabalho de coletivos como comum.vc e geledes.org.br
Cursos
Procure cursos presenciais ou online que colaborem com seu aprendizado, principalmente quando ministrados por pessoas que façam parte de grupos minorizados. Vale o investimento, mas existem ainda opções gratuitas.
Recomendação: Procure por cursos em sites de universidades e ONGs
Documentários
Por meio de contextualização, entrevistas e imagens históricas, documentários aproximam espectadores do tema abordado e apresentam realidades com potencial de gerar empatia.
Recomendação: A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson (Netflix)